Mal de Alzheimer
Voo
sereno, abalado apenas pelas memórias recentes de uma viagem de férias que
termina hoje. Quando retorno de férias para casa (o lugar onde nasci), volto marcado
pelas “coisas essenciais” da vida. Uma delas é o contato com a família e em especial
com os familiares. Aos poucos, tomo consciência da finitude da família, das suas
contradições e das suas maravilhas!
Contradições
e maravilhas foi o que encontrei ao rever a minha mãe. Dona Maria José, a
estação da minha vida, vive lá, no torrão vital onde aterrissei em 24 de fevereiro
de 1972. Sexagenária e vítima do mal de Alzheimer, caminha ligeiramente para o
inevitável silêncio que a doença vislumbra. A cada seis meses constato,
surpreso, grande perda de mobilidade, consciência e sociabilidade.
Não
se sabe quando a doença a sequestrou, talvez há dez anos, quem sabe; foi chegando
e aos poucos controlando alguns espaços principais de sua mente. Tristezas, fantasias,
esquecimento, solidão fazem parte do histórico mais recente. Hoje, está moldada, transformada em um ser domado pelas alternadas ondas do humor, no mar incerto desse mal que mata a mente, a memória, os sentidos, as
relações.
Cada
olhar da Dona Maria é uma tentativa frustrada de entender o que se passa, de saber
quem são as pessoas que a rodeiam, de saber quem ela é. São comuns as poucas palavras
e muitas interjeições, expressões confusas, sorrisos surpresas, tentativas de
fala.
O mal
de Alzheimer mata as memórias do portador, corrói as relações de identidade entre
a vitima e a sociedade. O que sente minha mãe? Que deseja? O que espera? Sente dor? Incompreensível
situação! Mas ainda resistem alguns sinais de afetos, de sentimentos.
Mãe
não é um pedaço da gente, nem somos seu pedaço, mãe é extensão do nosso ser que
nunca morre; é complemento irrenunciável da harmonia da existência, sem o qual
toda pessoa tece história, mesmo que errante e incompleta.
Dependente,
deficiente, sofredora... gente! Hoje vive a tragédia de não conhecer ninguém e a
graça de desprender-se do passado doloroso que a martirizava. Santa, pecadora, vencedora! Vitória que exige de
seus filhos os cuidados essenciais para mantê-la viva: alimentar, cuidar,
banhar, animar, ninar, entender, vigiar, medicar... contemplar a finitude!
Aqui
em cima, o voo segue brando e contínuo, mas em breve vou ouvir a anunciação: “tripulação,
preparar para o pouso”. Tão semelhante é a nossa existência: em altos voos, chega
a hora de descer e, mesmo que não queria, deverá se preparar. Aos poucos a altitude vai baixando e retornamos para o mundo de
onde decolamos. O longo voo que alçou a minha mãe para este mundo sem a ajuda da cegonha, ainda não pede pra baixar o “trem
de pouso”, há muitas milhas para fender na atmosfera. Mantenho o gosto de deslizar no espaço, há muita vida a contemplar.