“A Suíça é o principal local de lavagem de dinheiro do nosso
planeta, o local de reciclagem dos lucros da morte.” O alerta bem que poderia
ter sido feito pelas fontes que revelaram os segredos das 100 mil contas do
banco HSBC na Suíça, o que criou um terremoto mundial. Mas, na verdade, a frase
já foi dita há 25 anos na primeira página de um livro que já revelava tudo o
que se vê agora.
A entrevista é de Jamil Chade, publicada pelo jornal O
Estado de S. Paulo, 01-03-2015.
Em A Suíça Lava Mais Branco, o suíço Jean Ziegler
escancarava um cenário muito diferente da imagem que o país tentava transmitir
ao mundo. Hoje, diante das provas do que ele mesmo já dizia, seu sentimento é
de que o “tempo lhe garantiu justiça”. Mas, ele mesmo avisa: o HSBC é apenas a
ponta do iceberg de um sistema inteiro de fraude. Provocador, Ziegler questiona
como um país sem recursos naturais como a Suíça se transformou em um dos mais
ricos do mundo. “Aqui, a matéria-prima se chama dinheiro estrangeiro”, disse.
Em 1990, quando o livro saiu, Ziegler era membro do
Parlamento Suíço. Em menos de um ano, seu livro foi alvo de nove processos
legais e até hoje ele paga a multa de US$ 6 milhões que recebeu. Ziegler, hoje
com 80 anos, O escritor foi acusado como “traidor” pelos demais políticos, sua
imunidade parlamentar foi retirada, perdeu sua casa, foi atacado pela imprensa
e diz ter sido até ameaçado de morte. A poderosa Associação dos Bancos Suíços
rejeitou as acusações na época e garantiu que o sigilo bancário “não protegia
criminosos”.
Eis a entrevista.
Um quarto de século depois que o sr.denunciou como os bancos
suíços operavam, o HSBC está hoje no centro das atenções mundiais. Isso o
surpreende?
Não. A história que estamos escutando é, no fundo, a
normalidade helvética mais banal. Essa é apenas a normalidade banal e cotidiana
da Suíça e a ponta do iceberg. E o pior é que vai continuar.
Como assim?
Existe uma corrupção institucional na Suíça. Na maioria dos
países, o órgão que regula os bancos é uma entidade estatal. Na Suíça, trata-se
de uma empresa semi-privada e que é paga pelos bancos. Uma agência que regula
bancos bancada pelos bancos. Há ainda um segundo aspecto. A lista de pessoas
com contas no HSBC já era de conhecimento das autoridades suíças desde 2012,
quando a relação de contas circulou entre os governos. Berna sabia que o
dinheiro vinha das drogas colombianas, da máfia, do terrorismo e da lavagem de
dinheiro. Mas até hoje nenhum processo foi aberto.
Como um país que se apresenta como uma democracia perfeita
vive uma situação dessas com seus bancos?
Já em 1990 eu citei uma frase de Jean-Jacques Rousseau no
meu livro: os ricos andam com a lei sempre dentro de seus bolsos. Mas a
realidade é que existe uma explicação mais complexa. A Suíça é uma democracia
onde não existe a ideia da incompatibilidade de funções no Parlamento. Ou seja,
um deputado não ganha um salário para ser deputado. Apenas uma ajuda de custo e
precisa manter seu emprego. E quem são os deputados suíços? Pequenos
comerciantes, agricultores, profissionais liberais e até donas de casa. De repente,
essas pessoas passaram a ser convidadas a fazer parte do conselho de empresas.
Isso fez com que o Parlamento fosse colonizado por multinacionais e bancos. No
Parlamento, quem sempre tem maioria são os bancos.
E como isso dificulta qualquer tipo de ação de regulação?
No caso dos bancos, isso significa que as reformas do
sistema financeiro praticamente não existem como iniciativas internas da Suíça.
Dou um exemplo. Na crise financeira, o governo resgatou o UBS com US$ 61
bilhões. Agora, a ideia era de que o banco fosse reformado. Mas nada disso
ocorreu. No Parlamento, foi impossível aprovar qualquer coisa que não seja
antes aprovada pelos bancos.
De onde vem esse poder dos bancos na Suíça?
A raiz disso é ainda o papel que tivemos na Segunda Guerra e
a cumplicidade com o regime de Hitler. Desde então, temos as maiores fortunas
do mundo. Hoje, 27% da riqueza global está na Suíça. Mas como é que podemos
estar entre os dez maiores PIBs do mundo em termos per capita e viver num país
sem recursos naturais? Aqui, a matéria-prima se chama dinheiro estrangeiro, que
vem de fraudadores internacionais, dinheiro do crime ou dinheiro do sangue, que
é como eu chamo o dinheiro das ditaduras.
Mas os bancos tiveram de mudar recentemente, com novos
controles.
O único golpe, ironicamente, veio dos EUA, que os ameaçou.
Os bancos foram alertados que ou pagavam multas e mudavam suas práticas ou
simplesmente Wall Street se fecharia a eles, o que significaria sua falência.
Diante da pressão americana, o segredo bancário vai
sobreviver?
Essa é talvez a maior mentira de todas, a de que o segredo
bancário está acabando. A Suíça foi obrigada a assinar um acordo internacional
pelo qual está de acordo em trocar informações sobre correntistas a partir de
2018. Mas partidos já iniciaram uma campanha para realizar um referendo contra
o acordo e não há qualquer garantia de que essa troca de informação vá ocorrer.
Pior que isso, mesmo que a troca de informações ocorra, não será nada fácil
saber quem está por trás de uma offshore com contas em Genebra e sede no
Panamá.
Como se sentem as autoridades suíças hoje, diante da pressão
mundial?
Os suíços estão sofrendo muito. Para os calvinistas, ser
criticado em público é um grande trauma. A reputação é tudo e se cultivou por
décadas que eles faziam tudo sempre bem. De repente, agora se sabe que não e,
por isso, eles sofrem psicologicamente.
Qual foi a reação local quando o seu livro saiu?
Bom, fui alvo de nove processos e de uma campanha da
imprensa contra a minha pessoa. Pela primeira vez desde 1939, o Parlamento
retirou a imunidade de um deputado.
O sr.foi ameaçado?
Sim. Mas não saberia dizer por quem. Meu filho era pequeno e
tínhamos de caminhar com escolta até a escola. Meu carro foi sabotado na
estrada entre Lyon e Genebra. Sofri outros dois ataques. Perdi uma casa e, até
hoje, a conta que recebe o dinheiro da renda do livro está bloqueada.